Os atores já aguardavam o público na penumbra, em um plano mais alto ao fundo do palco, cenograficamente rude e cinzento, ao som de uma música misteriosa e um tanto ameaçadora, que lembrava o vento e a água. Senti o clima dos primórdios da tragédia, mas o resto era obscuro ainda.
Ao começar o espetáculo, percebi a inserção do coro grego no formato de um coral moderno, cujo canto, de vez em quando, era acompanhado de uma música com um ritmo forte, cadenciado e lento, um tanto irritante. Seria esta a intenção? Na primeira música– no prólogo da tragédia- todos cantavam lado a lado, cada um com seu microfone. Depois passaram a cantar caminhando em volta dos personagens e até surgindo por trás da plateia e permanecendo ao lado desta. As letras e músicas inéditas eram pertinentes ao tema e as vozes foram bem trabalhadas, mas, lamentavelmente, nem sempre entendidas, devido à mistura com a percussão alta. Os integrantes do coro se alternavam, conforme a necessidade de interpretar outros papéis nos episódios entre as canções, e, às vezes, seus componentes se transformavam em um somente – o Corifeu.
A iluminação consistia principalmente de contrastes de sombra e luz, bastante adequadas, mas os enormes faróis brancos ou amarelos que, repentinamente, se acendiam, para mostrar a presença poderosa de Deuses do Olimpo ao se manifestarem aos homens, quase nos cegavam. A ideia seria esta? Talvez, pois a Direção tentou integrar a plateia às cenas, tornando-se aquela, ao final da peça, todo o povo de Atenas.
Os atores saíam e voltavam ao fundo do palco, no plano alto, através de uma enorme rampa, bastante íngreme e estreita, e por meio de vários tipos de caminhar, conforme o personagem e a emoção. Uma delas literalmente deslizou deitada na rampa, tal como vítima humana lançada ao alçapão do Destino, numa concepção bastante criativa. A rampa parecia trazer os personagens a outro patamar da existência, ao plano humano, bem em frente a nós, onde se encontrava, bem destacada, uma sepultura simples e alta, formada de muitas pequenas pedras. À direita da parte frontal do palco, num canto pouco iluminado, podia ser observado um grande tacho, como um Oráculo, onde se procurava manter aceso o incenso, quase sempre por Clitemnestra. A estrutura da cenografia com dois planos remete ao conceito de Divino e Humano, Palácio e Povo, poder e submissão. Há um terceiro plano subtendido, subterrâneo, das Fúrias, entidades arcaicas (que perseguem os matricidas e parricidas), associadas aos desejos de vingança.
Segue-se a história, resumo da trilogia de Ésquilo (Agamemnon, Coéforas e Eumênides), que trata da desgraça de toda uma estirpe grega, dos Átridas (cuja genealogia aparece no “folder” da peça), destinada a sofrer a morte criminosa de vários de seus membros, ascendentes e descendentes, anunciadas em profecias, a partir da maldição de Tiestes a seu irmão Atreu, rei de Micenas, quando soube, durante banquete oferecido pelo irmão, que se alimentara dos membros dos próprios filhos, assassinados como vingança por ele ter sido descoberto como amante da cunhada, Aérope.
Início da peça: um fogo mensageiro visto nas montanhas é anunciado por Clitemnestra, esposa de Agamenon, rei de Argos (filho de Atreu e Aérope), como o sinal de que este venceu a guerra contra Tróia, que esta foi dominada e, portanto, que ele deverá ser recebido com as honras de herói. Cena paralela, em outro plano, revela à plateia que, para obter a vitória, Agamenon matou a própria filha virgem (Ifigênia), em sacrifício à deusa Artemis, controladora dos ventos.
Cena seguinte: A esposa, Clitemnestra, recebe o herói na porta do palácio com um discurso forte e aparentemente amoroso, mas cheio de ironia e raiva pela morte da filha e avisa que o filho do casal, Orestes, está sendo criado na cidade de Fócida, por outra família, devido à guerra. Belíssimo trabalho de interpretação. Nesse momento, pela primeira vez, pude sentir algumas emoções humanas de que trata a tragédia.
Agamenon parece rejeitar as homenagens da esposa, mesmo depois de tanto tempo de ausência, e traz consigo, como troféu de guerra, uma escrava, Cassandra, o que instiga o ciúme da esposa.
O trabalho de corpo de todos os atores é evidente, gestos, andar e postura de cada personagem são traços que devem identificá-lo, além das vestes e do penteado. A simbologia de alguns elementos é bem interessante, como a da rede de pesca colocada por Clitemnestra sobre a rampa, representando o tapete para a entrada triunfal do herói dono da casa. Mas que parece indicar, ao mesmo tempo, a rede do destino trágico que o espera.
A escrava concubina custa a aceitar entrar no palácio e, sendo vidente, faz previsões terríveis para a família de Agamenon. Mas a atriz careceu da profundidade e maturidade necessárias ao transmitir a dor de perder a cidadania (sua identidade), bem como os mortos queridos abandonados na cidade dominada. Um personagem masculino (Corifeu) representando o coro, muito convincente como ator, estimula a escrava a aceitar sua nova condição. Lá dentro, está o amante de Clitemnestra, Egisto, mal percebido em cena. Na mesma noite, Clitemnestra assassina o marido, juntamente com a amante, como previsto por Cassandra, em vingança pela morte da filha.
Muda o foco da história, em nova cena importante: muitos anos após o assassinato de Agamenon, Electra, outra filha de Clitemnestra, está diante da sepultura do pai, para realizar um ritual solicitado pela mãe com a finalidade de expiar sua culpa (após um sonho premonitório, em que dá à luz uma serpente). Electra conversa com o pai, enterrado sem a sepultura merecida pelos heróis, acusando a própria mãe e o amante por sua morte. Clama por vingança e pelo retorno do irmão exilado, Orestes, para colocá-la em ação. A cena do ritual na sepultura é feita com esmero, derramando Electra sobre a terra dois tipos de líquidos (libações fúnebres), após ter depositado as mechas de cabelo da mãe (Clitemnestra), que aos poucos retira de si mesma, a mesma atriz transformando-se, diante de nós, na filha.
No episódio seguinte, integrado ao anterior, Orestes se encontra finalmente com Electra, junto à sepultura do pai, mas não é reconhecido de imediato pela irmã. Quando se descobrem, se abraçam e comemoram a alegria mútua, rara nessa peça, rindo juntos, deitados sobre a terra. Momentos depois, Orestes, seguindo a profecia, decide matar a mãe, quando a irmã revela os autores do assassinato do pai. Valendo-se da mudança de sua aparência, após anos de exílio, consegue enganar a mãe e entra no palácio como mensageiro, com todas as regalias. Revela que traz um recado sobre a morte de Orestes. A mãe titubeia como em choque, mas o coro comenta que é só fingimento, pois de fato ela teme o que poderia acontecer, se o filho estivesse vivo. Nessa noite, Orestes mata os dois, mãe e amante.
A cena muda: Orestes demonstra enorme sofrimento por seu gesto de vingança contra a mãe e clama por Apolo (deus contraditório, que, segundo o enredo, o ajudou no ato criminoso), o qual aparece em forma de personagem, de terno branco, brilhante e moderno (“apolíneo” conforme o mito). As Fúrias, forças primitivas, querem vingança por Clitemnestra e o amante e se manifestam atacando os humanos, às vezes representados pelo coro, cujos componentes se contorcem como sentindo dor, alguns atores expressando-se corporalmente melhor que outros. Surge do chão a cabeça fantasmagórica de Clitemnestra, vinda de uma região subterrânea associada às Fúrias, mostrando a ferocidade de seu desejo de vingança (original recurso de cenografia).
Apolo, tentando ajudar Orestes, que busca perdão e alívio, o conduz ao reino de Atená, deusa poderosa, que procede a um julgamento equilibrado. Escolhe esta um júri de doze pessoas entre o povo de Atenas, representado por pessoas da plateia (selecionadas pouco antes do espetáculo, conforme foi visto), as quais colocam seu voto em uma urna oferecida por Atená, que enquanto isso, fuma um charuto (aspecto também masculino da deusa?). O resultado por ela anunciado é: empate. Simples, pois Atená tem o poder de desempatar e absolve Orestes. Atená se apresenta como mulher bonita e sensual, de vermelho. Mostra-se tranquila e lúcida. O folheto da peça a descreve como uma Deusa de inteligência pragmática, mais tarde identificada pelos filósofos como a sabedoria. Atená, afinal, propõe uma solução e um final prático para a tragédia: a transformação das Fúrias, que passariam a ser chamadas de Eumênides, com direito a templos e adoração do povo, o que é aceito pelo representante do coro (Coristeu), voltando a reinar a paz entre os humanos e terminando assim o ciclo de desgraça da família predestinada.
O conceito de justiça perpassa todo o espetáculo, e é mencionada, no folheto explicativo, a “justiça-injusta dos deuses”. Pois o Homem é submisso às determinações dos deuses, não tem poder de alterar o seu destino. E uma vingança gera outra vingança, ciclo que nunca parece terminar. A solução da transformação das Fúrias sugere um avanço no desenvolvimento da tragédia e da sociedade grega, identificadas uma com a outra.
Quanto ao desempenho dos atores, é justo dizer que Clitemnestra mostrou-se a mais vibrante e segura em falas e atitude, muito bem representada pela atriz. Orestes foi um tanto pomposo e exagerado no início, mas ganhou intensidade e naturalidade no desenrolar da peça. O amante de Clitemnestra, Egisto, apareceu pouco. O ator que representou Coristeu, personagem mais velho e representante do coro, foi sempre muito bem, sobretudo na dicção e no tom da voz. Aliás, houve ocasionalmente um descompasso entre a gravidade e exatidão da fala de uns e a leveza demasiada de outros, não sei se proposital. A acústica não foi perfeita e prejudicou a compreensão das letras das canções do coro, devido à altura da música e da percussão. Mas a maioria dos atores revelou interpretação correta, conforme o personagem. Com exceção de Cassandra, quando escrava, muito delicada para um personagem tão forte. Coube-lhe melhor a personagem Ifigênia.
Entretanto, todos os atores merecem parabéns pela ousadia e dedicação ao apresentar e interpretar texto tão antigo e de montagem tão complexa, aos olhos da atualidade. A verbalização, em Oréstia, é menor que em outras tragédias gregas, pois o ser humano aparece ainda um tanto primitivo. O canto e o trabalho de corpo sobressaem. A direção musical teve algumas falhas citadas, ou, melhor dizendo, exageros, e a iluminação cumpriu seu papel. Não se deu destaque ao altar onde era oferecido incenso aos deuses. Privilegiaram-se os símbolos da morte, fatalidade humana.
É necessário um estudo anterior para a perfeita compreensão da peça, ainda mais que os atores representam, às vezes, dois ou até três personagens, que nem sempre ficam claramente identificados. O folheto sobre a peça, de textura e design refinados, tenta esclarecer o contexto e o significado da tragédia grega e de alguns personagens, numa bela e erudita descrição, bem como contém a letra das músicas entoadas pelo coro. Mas subtende um nível cultural acima do espectador mediano. Contudo, fazer uma análise crítica é bem difícil, ainda mais sendo o espetáculo uma síntese bem sucedida da trilogia de Ésquilo. Assim, aplaudi pelo esforço, pela coragem e pelo bom trabalho em geral dos atores e de sua Direção. São duas horas de espetáculo denso e, por vezes, de difícil compreensão, mas a forma de se apresentar com tantas variedades de expressão, o trabalho de aproximação do texto aos nossos dias, de colocar o som a serviço da criação de um clima propício, pontuando a fragilidade e a pequenez do homem diante da magnitude e do gigantismo do poder divino e das tramas do Destino (a Moyra grega), associados a uma cenografia e a uma iluminação marcantes e a trabalhos individuais fortes, nos proporcionaram, sem dúvida, um grande prazer estético e dramático.
Minha nota é 8.
Maria Helena Nina- Rio de Janeiro