“ARRESOLVIDO” – aroma de brasilidade no CCBB / BRASÍLIA

FOTO: Rany Carneiro

FOTO: Rany Carneiro

Quem assistir ARRESOLVIDO, no Teatro II do Centro Cultural do Banco do Brasil, poderá ver uma sucessão de cenas encantadoras e bem humoradas. Num cenário com quinze colunas de grossos bambus, o universo acanhado de um povoado interiorano de alguma região brasileira, se enche de vida com o dia-a-dia dos seus moradores, seus hábitos e suas superstições.

“Defuma com as ervas da Jurema, defuma com arruda e guiné, defuma com as ervas da Jurema, defuma com arruda e guiné, benjoim, alecrim e alfazema, para defumar filhos de fé.”

Sob o ritmo agradável de uma canção, marcada pelos sons dos instrumentos musicais – percussão e cordas, o ator Felipe Silcler (foto) vive um dos sedutores momentos desse espetáculo. É quase impossível falar de um ator isoladamente nesse trabalho. Existe um envolvimento cênico entre os personagens, que vai tecendo uma cumplicidade poética, num enredo cheio de imagens envolventes, prontas para serem experimentadas por todos os sentidos dos espectadores – inclusive o paladar com as deliciosas cocadas da avó.

A montagem é muito bem “arresolvida” pela notável direção do André Paes Leme. As cenas são cuidadosamente trabalhadas: o Menino (Zé Wendell), nas brincadeiras e proseados com o moleque seu amigo (Fabiano Raposo), vai crescendo, e muito cedo, na certeza que já é “homem grande”, protege a mãe dos misteriosos perigos do lugar. André Paes Leme conseguiu chegar a um resultado harmônico, onde o jovem elenco, extremamente comprometido, mostra ao público suas conquistas artísticas.

O texto de Érida Castello Branco tem o aroma de brasilidade e uma simplicidade contagiante. É o vencedor da 5ª Edição do Concurso de Dramaturgia “Seleção Brasil em Cena”, na cidade do Rio de Janeiro. O charme de ARRESOLVIDO está na modéstia da poesia engendrada por Érida e na direção do André Paes Leme.

A direção musical de Pedro Poema, em conjunto com a preparação vocal de Mauricio Detoni, enche de encanto as cantigas do espetáculo. O cenário e figurino de Carlos Alberto Nunes, bem como, o clima misterioso da iluminação de Renato Machado, são importantes na atmosfera alegórica do trabalho.

ARRESOLVIDO conta com um admirável elenco: Marina Monteiro (a mãe), Celso Gayoso (o pai), Zé Wendell (o menino), Fabiano Raposo (o moleque), Felipe Silcler (a avó), Pedro Poema (o médico) e Bárbara Abi-Rihan (a comadre). ARRESOLVIDO é imperdível.

BRASÍLIA – Local: Teatro II – CCBB

Data: De 21 de fevereiro a 17 de março/De quinta a sábado, às 20h. Domingo, às 19h.

Entrada: R$ 6,00 (inteira) e R$ 3,00 (meia)

Classificação indicativa: 14 anos.

Contato: 061 31087600

*Joaquim Netto

Historiador e Critico de Arte

Drando. pela Escola de Belas Artes – UFRJ

OS MISERÁVEIS – Grandiosidade, desde o início, é a marca do filme.

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As velas da imensa galera encalhada devem ser erguidas pelas dezenas de grossas cordas puxadas por inúmeros homens condenados a esse trabalho.  Mas não sei se podemos chamar de homens aquelas criaturas que quase não tem condição de erguer a si mesmos. Um deles se mostra mais forte e dele se exige mais, quase o impossível. Deve arrastar sozinho um gigantesco mastro caído. E consegue. É a deixa para identificar o herói da história. Muito acima deles, observando-os durante todo o tempo, o Comandante não disfarça o prazer de provocar tal tortura. Seu poder depende de quão fracos sejam os subjugados. A força do herói o desafia e aborrece. Quer vingança.

Miseráveis são todos os pobres, doentes, frágeis, abandonados, maltratados, esquecidos, humilhados em qualquer parte da sociedade daquela época. O musical exalta essas pessoas, ou mártires, que aguentam tudo, além do limite do suportável. Heróis e heroínas anônimos.

Mas são também os hipócritas, arrogantes, traidores, vaidosos, vingativos, perversos, invejosos, odientos, malditos, a classe dos patrões. Donos de fábrica, militares e governantes.  Os de alma miserável. Ou mesmo os pobres, de espírito pobre.

O mundo apresentado desde o começo da película é o Inferno na Terra. Os seres humanos que constituem o povo têm os olhos desolados e assustados, a pele encardida e as roupas rasgadas e imundas. São eles, menos gente do que trastes. Sem esperança, sem futuro, na expectativa da morte sem alívio, por doença, fome ou castigo. A música que acompanha este cenário é incisiva, repetitiva, ameaçadora, de tom ascendente, épico.

Mas o destino de um dos prisioneiros das galés, o herói da história, vai mudar. Ao ser libertado após dezenove anos de cumprimento da pena (não sabemos por qual crime), temeroso e sem perspectivas, submisso ao destino cruel ligado a seu nome e à sua situação de ex- prisioneiro, que sempre lhe impede de obter emprego, percebeu que só dependia dele mesmo se libertar, desde que se tornasse outra pessoa, com um novo nome. Assim, usando de astúcia e de inteligência, ao longo de alguns anos, ergueu-se socialmente e conseguiu poder e dinheiro como dono de uma fábrica (chamado de Prefeito), obtendo uma posição de prestígio na cidade. E tornou-se um senhor melhor do que seus senhores antigos. Só que seu algoz não desistiu de persegui-lo, talvez por questão de honra militar e necessidade psicológica de conquista. E um dia o achou. Mas como agora o antigo prisioneiro gozava de poder igual ao dele, e tinha a aparência totalmente transformada, ficou em dúvida quanto a sua identidade e adiou a intenção de prendê-lo, passando a trabalhar nas proximidades, para vigiá-lo.

A heroína do musical é a personagem feminina que trabalha na fábrica do herói, agora rico e poderoso, e que é assediada pelo supervisor, mas sempre recusa suas investidas. Quando as colegas malvadas descobrem e contam que ela já é mãe, este se sente ofendido de ser recusado por uma mulher que não é mais virgem e que pode até ser uma prostituta, como foi acusada, certamente por inveja de sua magnífica beleza. O patrão não ouviu os gritos da jovem, logo demitida e colocada à força na rua, em uma noite gelada, e não a socorreu. Daí em diante, ela não teve mais os meios para sustentar a filha e teve de se prostituir de verdade para conseguir dinheiro, nos piores tipos de prostíbulo, vendendo cabelo e até dentes, por qualquer centavo, em total desespero. Quase morta, é encontrada finalmente pelo Prefeito e diz a ele que, por sua negligência, chegou àquela situação, mas ele, encantado por ela, diz que não sabia de nada, senão a teria ajudado. Ela lhe pede então que vá buscar a filha pequena que mora com um estalajadeiro. A partir desse momento, a menina é criada como filha do Prefeito. A mãe, já muito doente, mas agradecida ao seu benfeitor, morre em paz.

Anos depois, começam na França os movimentos políticos em prol da liberdade, encabeçados por jovens revolucionários. Entre eles, encontra-se um rapaz, figura nobre, que vem a conhecer por acaso a filha da heroína e os dois se apaixonam. Tentam se reencontrar, mas o Prefeito, precisando escapar do Comandante, seu algoz perene, que finalmente o reconheceu, deve fugir mais uma vez , levando a filha consigo, desconsolada por deixar aquele que é o amor de sua vida. Cosette é o nome da donzela que passou a ser a obcessão do jovem, perturbando seus ideais revolucionários. Mas acreditando  que ela viajou sem avisá-lo e, portanto, não o ama ( por intriga de uma companheira política, de condição inferior e também envolvida por ele, que roubou o bilhete que a amada lhe deixara), o jovem decide voltar à luta.

Os rebeldes são idealistas e pensam em vencer os soldados franceses com poucas armas e protegidos por uma barricada feita de móveis velhos doados pelo povo. No dia marcado para o confronto, se dirigem para uma pequena rua, onde amontoam os móveis e se escondem, ficando na expectativa dos soldados e supondo que o povo virá em massa, ajudá-los, pelos ideais de liberdade, o que não ocorre. Ao som de uma marcha lindíssima, os vemos, sozinhos, enfrentar os batalhões e morrer, encurralados, pois o povo sequer lhes dá guarida em suas casas. Os soldados perseguem e matam quase todos, menos o rapaz que é o amor da filha do Prefeito e que este encontra já muito ferido e  carrega, através das ruínas da batalha e depois, chafurdando-se dentro de esgotos, até sua casa, são e salvo, para alegria de Cosette.

Após a derrota, pode-se contemplar ao longo da sarjeta, uma extensa fileira de belos jovens mortos, incluindo uma corajosa criança, que auxiliou os demais e recebe uma medalha em seu peito, diante dos emocionados soldados franceses. Nesse momento, embalados pelos cantos que os lamentam, percebemos, em clima de luto, a ingenuidade daquele grupo revolucionário, pois mesmo o povo mais sacrificado se acovardou perante a luta.

Pouco antes do embate, o Prefeito, em busca do rapaz que sua filha ama, descobrira o Comandante, seu algoz, em meio à garotada, infiltrado para traí-los.  Então o acossa e o ameaça, mas afinal lhe concede a liberdade.  Entretanto, o militar não entendeu e não aceitou ser perdoado e liberado, pois isso o fez sentir-se humilhado. Não sabendo o que fazer e não se reconhecendo mais, pois ele e sua função se confundiam, reluta  ante o impulso de suicidar-se, porém, algumas horas mais tarde, mergulha da ponte ao abismo, dentro d’água.

O jovem namorado se recupera e agradece ao pai da moça por estar vivo. Celebra-se o lindo casamento dele e de Cosette, ao qual comparecem os abastados da sociedade local, incluindo o casal dos velhacos  estalajadeiros, disfarçados de nobres, que haviam fingido criar a filha da heroína, mas a exploravam até ser ela adotada pelo Prefeito, exigindo uma polpuda recompensa para libertá-la de seu jugo. Em suas fisionomias caricatas, estampam-se a cobiça e a hipocrisia, em todos os momentos.

Passado algum tempo, o pai de Cosette pede ao marido dela que cuide da filha, pois sente estar cada vez mais doente e fraco.  O espírito da heroína, mãe da namorada, vem buscar o pai herói, enquanto este morre suavemente, assistido pela carinhosa filha e o genro.

Ao fim de tudo, é uma história de amor. Pois só o amor redime, só o amor salva, é o que nos transmite o filme. O amor é eterno.  Pela violência, pelo ódio, pela guerra, nem sempre se vence.  O que leva à verdadeira vitória é a persistência, a honra, a fé, a esperança e o amor. Ideais da moral cristã. Há uma referência implícita à crença de que a virtude não está associada à condição social, pois ricos e pobres podem ser bons ou maus. Então, quem define o ato individual é a consciência íntegra e o espírito elevado.

É um musical muito triste. Mas da devastação e da tristeza surge uma beleza reconfortante, uma comoção amorosa que alivia o peso da dor. Chorei muito, mas como os heróis do filme, por uma boa causa. E graças às composições minuciosas dos personagens, a suas interpretações preciosas e suas belas vozes que entoam, com perfeição, as canções do enredo e, ao mesmo tempo, expressam, de forma arrebatadora, as mais delicadas e profundas emoções.  Valeu cada minuto. Nota 10.

 

Por Maria Helena Nina

 

 

“Arresolvido” – A liberdade como valor central.

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Chegando à porta do teatro, fui recepcionada por jovens atores oferecendo cocada, com entusiasmo e simpatia. Mordi a cocada, o doce escorreu em minha língua e em minha alma. Entrei em um clima de expectativa positiva e de aconchego.

O início da peça é um leve batuque executado por um “menino” (ator Felipe Silcler), logo sincronicamente acompanhado do som de um violeiro. Todos os atores vêm à frente do palco, cantando, como nos convidando a participar da história.

Um menino no sertão, depois de uma tarde de brincadeiras, de pés descalços, corpo solto, chega na sua casa, querendo o jantar. A mãe simplória, faz a sopa e responde à curiosidade do filho. Para ele, tudo é descoberta, deslumbramento diante do que a mãe vai lhe dizendo e que lhe traz mais vontade de perguntar. O mundo é o que a mãe lhe apresenta.

Para ele, tudo pode ser, ele pode até querer ser Deus. Mesmo vivendo na mais severa pobreza. A imaginação é livre. A mãe vai tentando mostrar o limite das coisas. Com a limitação de sua ignorância. Segundo ela, o Diabo pode se apossar dele, através de uma simples cocada surrupiada de um centro espírita, alojando-se em seu intestino.

Tramitam pela peça mensagens de duas religiões diferentes, abordando o poder do Deus católico (com Nossa Senhora e os anjos) que cura o “bicho de pé” do menino através da oração e a força do Candomblé, que através da dança, da invocação de entidades e da ingestão de comidas e bebidas também oferecidas a elas, consegue resolver os problemas daquela gente humilde.

A maior parte do enredo envolve as delícias da infância, ainda que pobre, e da inocência, mesmo dos adultos incultos. Assim, a miséria, aceita como rotina, e os costumes passados de pai para filho são o fundamento dessa sociedade interiorana.

Para o menino, o contexto representado pelos hábitos da mãe e do pai, constitui a base de sua segurança na vida. Então, na primeira parte da peça, ele apenas brinca radiante, sozinho ou com os amigos, de roda, de pipa, de bola, de correr. E conversa, trocando impressões sobre o mundo. Só não pode brincar de coisas de menina. Os papéis são bem delimitados: a mulher cozinha, lava a roupa no riacho com outras mulheres, varre, limpa a louça e cuida dos filhos. O homem sai para trabalhar, sustenta a família e por isso, pode chegar tarde, ficar cansado e ser sempre servido pela mulher.

Mas, a comadre da mãe que vive sozinha começa a questionar: também quer ser livre, correr e jogar bola como os garotos e até trabalhar e ganhar seu dinheiro, mesmo correndo o risco de ser mal vista. Quer até escolher ter um filho e não precisar de homem para sustentá-la. Esta quer arriscar, mas a outra, representando a tradição, pondera e resiste.

A liberdade é um valor central nessa peça, que discute sutilmente a igualdade dos sexos. A cocada é símbolo do desejo. O candomblé representa o culto à Natureza, a aceitação dos instintos. O calor que se sente após comer “aquela cocada” da baiana do Candomblé… hum! São os remédios do Candomblé que “soltam” o que está preso no corpo, mesmo no intestino. Quem já aceita a liberdade não precisa de ajuda, é apenas sorver a cocada e o efeito de incentivo à felicidade e à realização pessoal se concretiza. Então, para cada um, o efeito do remédio depende de seu interior. Ora, mas a canção diz “a flor está na alma e o espinho está no corpo” da mulher… É preciso integrá-los, portanto. Corpo e alma, prazer e alegria, não dor. É na alma que se encontra a beleza, a delicadeza. O corpo sofre com o espinho, com a luta diária da mulher. O corpo sofre sem a alma estar alegre. Mas se o corpo está aprisionado, a flor da alma fenece.

Não é para menos que esses jovens atores se prepararam, tornando o corpo maleável a ponto de, a um toque, tornarem-se crianças, adultos, mulheres, homens, santos, bichos (os pássaros visados pelo bodoque estão fantásticos!). O corpo dança, canta, alegra-se, transforma-se e transforma a alma. Não há alma sem corpo.

Logo o menino assume a responsabilidade de cuidar da mãe, pois o pai morre em briga na rua, por uma mulher. O papel de homem adulto imposto agora ao filho, antes da hora, é representado culturalmente pelo sapato apertado (que ele vai “usar todo dia”, como a repressão exercida pelas regras sociais), o chapéu, o perfume e o poder. A mulher precisa ser cuidada e vigiada, pois é vista como fraca e dependente diante do homem, em algumas sociedades. Mas há esperança. O filho percebe que não é tão forte, “não aguenta o peso da jaca” com que tentou matar o namorado da mãe, quando esta começa a trabalhar, influenciada pela amiga mais arrojada. E a mãe experimenta a própria força, quando decide comer a “cocada”, símbolo do desejo e da aceitação do corpo como morada desse desejo, por tanto tempo contido e visto como condenável pela religião dominante.

E enquanto a “avó” surge no final da plateia, oferecendo suas cocadas para quem precisa, a mãe reaparece no palco de vestido novo, evidenciando sua entrega à sexualidade, pois o pano foi presente do namorado, conforme confidenciado pelo filho ao amigo, em atitude de aceitação, um rumo diferente em sua educação.

Assim termina a história. São novos os tempos, em que o homem pode lavar a louça e ajudar em casa, sem deixar de ser homem, enquanto a mulher pode sair para sustentar a família, na falta do marido, sem deixar de ser feminina.

É um espetáculo de cunho eminentemente regional, mas que pode ampliar seu significado se o aplicarmos aos povos de alguns países, ainda tão primitivos e tão preconceituosos quanto ao papel da mulher.

A música é muito bem executada, cantada com harmonia e ritmo esmerados. Geralmente serve de ambientação para as cenas, junto com a iluminação, que é um dos pontos altos do espetáculo, acentuando cores e personagens, diferenciando com precisão e beleza as cenas concomitantes e destacando a cenografia, que trouxe, de forma tão singela e criativa, o ambiente sertanejo para dentro do palco.

Os atores surpreendem ao juntar tanta jovialidade, expressividade e delicadeza com o talento e a entrega característica de profissionais mais maduros, com diálogos claros e desempenhos fortes, numa integração perfeita entre eles, o que se deve também a uma direção segura, que conhece a finalidade de seu trabalho. Minha nota é 10.

O CCBB de Brasília os aguarda! Evoé!

ELENCO: Marina Monteiro (a mãe); Fabiano Raposo (o moleque); Pedro Poema (o médico); Celso Gayoso (o pai); Zé Wendel (o menino); Bárbara Abi-Rihan (a comadre); Felipe Silcler (a avó)

 

CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL RIO DE JANEIRO

TEATRO II – Temporada: 14 DEZ 2012 a 10 FEV 2013 / Quinta a Domingo, às 19h30.

 

(Por Maria Helena Nina – RJ)

ORÉSTIA – “justiça-injusta dos deuses”

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Os atores já aguardavam o público na penumbra, em um plano mais alto ao fundo do palco, cenograficamente rude e cinzento, ao som de uma música misteriosa e um tanto ameaçadora, que lembrava o vento e a água.  Senti o clima dos primórdios da tragédia, mas o resto era obscuro ainda.

Ao começar o espetáculo, percebi a inserção do coro grego no formato de um coral moderno, cujo canto, de vez em quando, era acompanhado de uma música com um ritmo forte, cadenciado e lento, um tanto irritante. Seria esta a intenção? Na primeira música no prólogo da tragédia- todos cantavam lado a lado, cada um com seu microfone.  Depois passaram a cantar caminhando em volta dos personagens e até surgindo por trás da plateia e permanecendo ao lado desta. As letras e músicas inéditas eram pertinentes ao tema e as vozes foram bem trabalhadas, mas, lamentavelmente, nem sempre entendidas, devido à mistura com a percussão alta. Os integrantes do coro se alternavam, conforme a necessidade de interpretar outros papéis nos episódios entre as canções, e, às vezes, seus componentes se transformavam em um somente – o Corifeu.

A iluminação consistia principalmente de contrastes de sombra e luz, bastante adequadas, mas os enormes faróis brancos ou amarelos que, repentinamente, se acendiam, para mostrar a presença poderosa de Deuses do Olimpo ao se manifestarem aos homens, quase nos cegavam. A ideia seria esta? Talvez, pois a Direção tentou integrar a plateia às cenas, tornando-se aquela, ao final da peça, todo o povo de Atenas.

Os atores saíam e voltavam ao fundo do palco, no plano alto, através de uma enorme rampa, bastante íngreme e estreita, e por meio de vários tipos de caminhar, conforme o personagem e a emoção. Uma delas literalmente deslizou deitada na rampa, tal como vítima humana lançada ao alçapão do Destino, numa concepção bastante criativa. A rampa parecia trazer os personagens a outro patamar da existência, ao plano humano, bem em frente a nós, onde se encontrava, bem destacada, uma sepultura simples e alta, formada de muitas pequenas pedras. À direita da parte frontal do palco, num canto pouco iluminado, podia ser observado um grande tacho, como um Oráculo, onde se procurava manter aceso o incenso, quase sempre por Clitemnestra. A estrutura da cenografia com dois planos remete ao conceito de Divino e Humano, Palácio e Povo, poder e submissão. Há um terceiro plano subtendido, subterrâneo, das Fúrias, entidades arcaicas (que perseguem os matricidas e parricidas), associadas aos desejos de vingança.

Segue-se a história, resumo da trilogia de Ésquilo (Agamemnon, Coéforas e Eumênides), que trata da desgraça de toda uma estirpe grega, dos Átridas (cuja genealogia aparece no “folder” da peça), destinada a sofrer a morte criminosa de vários de seus membros, ascendentes e descendentes, anunciadas em profecias, a partir da maldição de Tiestes a seu irmão Atreu, rei de Micenas, quando soube, durante banquete oferecido pelo irmão, que se alimentara dos membros dos próprios filhos, assassinados como vingança por ele ter sido descoberto como amante da cunhada, Aérope.

Início da peça: um fogo mensageiro visto nas montanhas é anunciado por Clitemnestra, esposa de Agamenon, rei de Argos (filho de Atreu e Aérope), como o sinal de que este venceu a guerra contra Tróia, que esta foi dominada e, portanto, que ele deverá ser recebido com as honras de herói. Cena paralela, em outro plano, revela à plateia que, para obter a vitória, Agamenon matou a própria filha virgem (Ifigênia), em sacrifício à deusa Artemis, controladora dos ventos.

Cena seguinte: A esposa, Clitemnestra, recebe o herói na porta do palácio com um discurso forte e aparentemente amoroso, mas cheio de ironia e raiva pela morte da filha e avisa que o filho do casal, Orestes, está sendo criado na cidade de Fócida, por outra família, devido à guerra. Belíssimo trabalho de interpretação. Nesse momento, pela primeira vez, pude sentir algumas emoções humanas de que trata a tragédia.

Agamenon parece rejeitar as homenagens da esposa, mesmo depois de tanto tempo de ausência, e traz consigo, como troféu de guerra, uma escrava, Cassandra, o que instiga o ciúme da esposa.

O trabalho de corpo de todos os atores é evidente, gestos, andar e postura de cada personagem são traços que devem identificá-lo, além das vestes e do penteado. A simbologia de alguns elementos é bem interessante, como a da rede de pesca colocada por Clitemnestra sobre a rampa, representando o tapete para a entrada triunfal do herói dono da casa. Mas que parece indicar, ao mesmo tempo, a rede do destino trágico que o espera.

A escrava concubina custa a aceitar entrar no palácio e, sendo vidente, faz previsões terríveis para a família de Agamenon. Mas a atriz careceu da profundidade e maturidade necessárias ao transmitir a dor de perder a cidadania (sua identidade), bem como os mortos queridos abandonados na cidade dominada. Um personagem masculino (Corifeu) representando o coro, muito convincente como ator, estimula a escrava a aceitar sua nova condição. Lá dentro, está o amante de Clitemnestra, Egisto, mal percebido em cena. Na mesma noite, Clitemnestra assassina o marido, juntamente com a amante, como previsto por Cassandra, em vingança pela morte da filha.

Muda o foco da história, em nova cena importante: muitos anos após o assassinato de Agamenon, Electra, outra filha de Clitemnestra, está diante da sepultura do pai, para realizar um ritual solicitado pela mãe com a finalidade de expiar sua culpa (após um sonho premonitório, em que dá à luz uma serpente). Electra conversa com o pai, enterrado sem a sepultura merecida pelos heróis, acusando a própria mãe e o amante por sua morte. Clama por vingança e pelo retorno do irmão exilado, Orestes, para colocá-la em ação. A cena do ritual na sepultura é feita com esmero, derramando Electra sobre a terra dois tipos de líquidos (libações fúnebres), após ter depositado as mechas de cabelo da mãe (Clitemnestra), que aos poucos retira de si mesma, a mesma atriz transformando-se, diante de nós, na filha.

No episódio seguinte, integrado ao anterior, Orestes se encontra finalmente com Electra, junto à sepultura do pai, mas não é reconhecido de imediato pela irmã. Quando se descobrem, se abraçam e comemoram a alegria mútua, rara nessa peça, rindo juntos, deitados sobre a terra.  Momentos depois, Orestes, seguindo a profecia, decide matar a mãe, quando a irmã revela os autores do assassinato do pai. Valendo-se da mudança de sua aparência, após anos de exílio, consegue enganar a mãe e entra no palácio como mensageiro, com todas as regalias. Revela que traz um recado sobre a morte de Orestes. A mãe titubeia como em choque, mas o coro comenta que é só fingimento, pois de fato ela teme o que poderia acontecer, se o filho estivesse vivo.  Nessa noite, Orestes mata os dois, mãe e amante.

A cena muda: Orestes demonstra enorme sofrimento por seu gesto de vingança contra a mãe e clama por Apolo (deus contraditório, que, segundo o enredo, o ajudou no ato criminoso), o qual aparece em forma de personagem, de terno branco, brilhante e moderno (“apolíneo” conforme o mito). As Fúrias, forças primitivas, querem vingança por Clitemnestra e o amante e se manifestam atacando os humanos, às vezes representados pelo coro, cujos componentes se contorcem como sentindo dor, alguns atores expressando-se corporalmente melhor que outros. Surge do chão a cabeça fantasmagórica de Clitemnestra, vinda de uma região subterrânea associada às Fúrias, mostrando a ferocidade de seu desejo de vingança (original recurso de cenografia).

Apolo, tentando ajudar Orestes, que busca perdão e alívio, o conduz ao reino de Atená, deusa poderosa, que procede a um julgamento equilibrado. Escolhe esta um júri de doze pessoas entre o povo de Atenas, representado por pessoas da plateia (selecionadas pouco antes do espetáculo, conforme foi visto), as quais colocam seu voto em uma urna oferecida por Atená, que enquanto isso, fuma um charuto (aspecto também masculino da deusa?). O resultado por ela anunciado é: empate. Simples, pois Atená tem o poder de desempatar e absolve Orestes. Atená se apresenta como mulher bonita e sensual, de vermelho. Mostra-se tranquila e lúcida.  O folheto da peça a descreve como uma Deusa de inteligência pragmática, mais tarde identificada pelos filósofos como a sabedoria. Atená, afinal, propõe uma solução e um final prático para a tragédia: a transformação das Fúrias, que passariam a ser chamadas de Eumênides, com direito a templos e adoração do povo, o que é aceito pelo representante do coro (Coristeu), voltando a reinar a paz entre os humanos e terminando assim o ciclo de desgraça da família predestinada.

O conceito de justiça perpassa todo o espetáculo, e é mencionada, no folheto explicativo, a “justiça-injusta dos deuses”. Pois o Homem é submisso às determinações dos deuses, não tem poder de alterar o seu destino. E uma vingança gera outra vingança, ciclo que nunca parece terminar. A solução da transformação das Fúrias sugere um avanço no desenvolvimento da tragédia e da sociedade grega, identificadas uma com a outra.

Quanto ao desempenho dos atores, é justo dizer que Clitemnestra mostrou-se a mais vibrante e segura em falas e atitude, muito bem representada pela atriz. Orestes foi um tanto pomposo e exagerado no início, mas ganhou intensidade e naturalidade no desenrolar da peça. O amante de Clitemnestra, Egisto, apareceu pouco. O ator que representou Coristeu, personagem mais velho e representante do coro, foi sempre muito bem, sobretudo na dicção e no tom da voz. Aliás, houve ocasionalmente um descompasso entre a gravidade e exatidão da fala de uns e a leveza demasiada de outros, não sei se proposital. A acústica não foi perfeita e prejudicou a compreensão das letras das canções do coro, devido à altura da música e da percussão. Mas a maioria dos atores revelou interpretação correta, conforme o personagem. Com exceção de Cassandra, quando escrava, muito delicada para um personagem tão forte.  Coube-lhe melhor a personagem Ifigênia.

Entretanto, todos os atores merecem parabéns pela ousadia e dedicação ao apresentar e interpretar texto tão antigo e de montagem tão complexa, aos olhos da atualidade. A verbalização, em Oréstia,  é  menor que em outras tragédias gregas, pois o ser humano aparece  ainda  um tanto primitivo. O canto e o trabalho de corpo sobressaem. A direção musical teve algumas falhas citadas, ou, melhor dizendo, exageros, e a iluminação cumpriu seu papel. Não se deu destaque ao altar onde era oferecido incenso aos deuses. Privilegiaram-se os símbolos da morte, fatalidade humana.

É necessário um estudo anterior para a perfeita compreensão da peça, ainda mais que os atores representam, às vezes, dois ou até três personagens, que nem sempre ficam claramente identificados. O folheto sobre a peça, de textura e design refinados, tenta esclarecer o contexto e o significado da tragédia grega e de alguns personagens, numa bela e erudita descrição, bem como contém a letra das músicas entoadas pelo coro. Mas subtende um nível cultural acima do espectador mediano. Contudo, fazer uma análise crítica é bem difícil, ainda mais sendo o espetáculo uma síntese bem sucedida da trilogia de Ésquilo.  Assim, aplaudi pelo esforço, pela coragem e pelo bom trabalho em geral dos atores e de sua Direção. São duas horas de espetáculo denso e, por vezes, de difícil compreensão, mas a forma de se apresentar com tantas variedades de expressão, o trabalho de aproximação do texto aos nossos dias, de colocar o som a serviço da criação de um clima propício, pontuando a fragilidade e a pequenez do homem diante da magnitude e do gigantismo do poder divino e das tramas do Destino (a Moyra grega), associados a uma cenografia e a uma iluminação marcantes e a trabalhos individuais fortes, nos proporcionaram, sem dúvida, um grande prazer estético e dramático.

 Minha nota é 8.

Maria Helena Nina- Rio de Janeiro

LINCOLN – Responsabilidade como exemplo e liderança.

critica-do-filme-lincoln-post-01FOTO: Daniel Day-Lewis em LINCOLN (2012).

Entro no cinema em meio à descrição dos números de mortos da Guerra entre Norte e Sul dos Estados Unidos: 600.000 vítimas, negros e brancos.

A cor é escura, o filme navega por tons de cinza e pouco colorido. Tal como a alma dos combatentes.

Lincoln (Daniel Day-Lewis- em composição extraordinária) é o cerne do filme: seu andar lento e descompensado, sua voz rouca e baixa, seu sorriso raro.

O povo o adorava.  Mas suas decisões eram sofridas, bem pensadas, nunca impulsivas.

Transitava em meio a seus empregados e ao povo, para ouvir muito. Ouvia também a esposa, (Sally Fieldes, excelente), que algumas vezes foi o estímulo para sua ousadia.  De repente, do silêncio mais absoluto, contava uma história a seus interlocutores, como parábola para expor seus pontos de vista.

Determinado, quase obcecado com o propósito de abolir a escravidão, mas inteligente bastante para compreender as artimanhas da política e se utilizar dos talentos de seus iguais e de seu próprio poder legal ao conduzir os políticos renitentes por caminhos transversos que levaram, no final, à justiça pretendida.

Pai amoroso, mas nem sempre presente, sabia o valor de cuidados e atenção com relação aos filhos, bem como sua responsabilidade como exemplo e liderança, inclusive no direito de escolher ir para a guerra, pelo filho mais velho, ainda que lhe doesse. Guardava seu sofrimento no fundo da alma. Deixava as manifestações de dor pela perda de um filho ainda criança, no passado, para a esposa dedicada.

Considerado pelos políticos oposicionistas como um tanto lerdo, surpreendeu os contemporâneos com sua persistência, sua crença absoluta na igualdade e na liberdade e seu patriotismo profundo.

Veio ao mundo com uma missão e a ela se dedicou, sem esmorecer. O povo americano lhe deve o orgulho de ser o país democrata de hoje.

O filme se desenrola no ritmo da vida naquele tempo, os atores estão entre nós, participamos ao lado deles, dos costumes, das manias, dos debates, das emoções, das tensões. E da serenidade do Presidente, enquanto aguarda o desenrolar de suas estratégias, que se transforma em entusiasmo no discurso final ao povo, após vencer a Guerra e a batalha da 13ª Emenda, ao mesmo tempo.

Saímos com a sensação de que a democracia vale a pena. Saímos de alma lavada. Aplaudindo.

Maria Helena Nina- Rio de Janeiro